Sequestro, homicídio e versões para livrar assassinos de crianças e adolescentes
2 de janeiro de 2022, Araguaína, Tocantins, um policial militar, um cinegrafista e um terceiro homem, acusados de promover um duplo homicídio, iniciado por sequestro seguido de morte de dois adolescentes: Eduardo, 14 anos e seu colega de 17 anos, com o objetivo de se vingar de um possível roubo de uma moto praticado por eles. O crime chocou o Tocantins. Os rapazes eram negros.
CASOS UNIDOS PELA BRUTALIDADE POLICIAL
2015, Rio de Janeiro, o Brasil foi abalado pela trágica morte de outro Eduardo, negro, o Eduardo de Jesus Ferreira, um menino de 10 anos, atingido por um disparo policial enquanto brincava na porta de sua casa no Complexo do Alemão, Rio de Janeiro. O caso, que inicialmente resultou na absolvição dos policiais envolvidos, foi reaberto em 2023 graças à incansável luta de sua mãe, Terezinha de Jesus, e à repercussão gerada pelo espetáculo teatral “Macacos”, de Clayton Nascimento.
“Macacos” é uma peça que aborda o racismo estrutural e a violência policial no Brasil, trazendo à tona histórias reais de jovens negros vitimados pela brutalidade policial. A produção tem sido um veículo poderoso para dar voz às famílias que perderam seus entes queridos em circunstâncias semelhantes, ampliando o debate sobre a violência sistêmica contra a população negra.
Recentemente, durante um evento em Brasília que contou com a presença de autoridades, incluindo a ministra Cármen Lúcia, o caso de Eduardo foi novamente destacado. Nesse contexto, foram mencionados outros episódios trágicos, como o de dois adolescentes mortos por policiais no Tocantins. As mães dessas vítimas, Janete Pereira Soares e Sandra Pereira de Souza, não puderam comparecer ao evento, mas suas histórias foram representadas por Terezinha de Jesus, que compartilhou a dor comum de perder um filho para a violência policial.
Janete Pereira Soares, mãe de um dos adolescentes mortos no Tocantins, contesta a versão oficial de que houve troca de tiros. Ela afirma que seu filho, de 14 anos, não tinha envolvimento com atividades criminosas e que a cena do crime foi manipulada para incriminá-lo postumamente.
“Meu filho não tinha ficha criminal. Foi tudo uma jogada suja”, desabafa Janete. Ela relata que objetos foram plantados junto ao corpo de seu filho para justificar a ação policial.
A peça “Macacos” tem desempenhado um papel crucial ao dar visibilidade a esses casos, servindo como uma plataforma para que mães como Janete e Sandra possam compartilhar suas histórias e buscar justiça. O espetáculo não apenas retrata a violência sofrida, mas também destaca a resistência e a luta contínua dessas mulheres por reconhecimento e reparação.
A inclusão dos casos de Janete e Sandra no discurso de Terezinha de Jesus durante o evento em Brasília é um exemplo do poder da arte como ferramenta de denúncia e mobilização social. Ao conectar diferentes histórias de violência policial, “Macacos” cria uma rede de solidariedade entre as famílias afetadas e reforça a urgência de uma reforma nas instituições de segurança pública no Brasil.
A luta dessas mães é um lembrete constante de que, enquanto a justiça não for plenamente alcançada, é necessário continuar questionando e desafiando as narrativas oficiais que tentam silenciar as vozes dos oprimidos. A arte, nesse contexto, emerge como uma aliada poderosa na busca por verdade e justiça.
TROCA DE TIROS
Janete Soares também nega a versão de que houve troca de tiros. “Mentira sobre troca de tiros. Também não sei se acredito que meu filho roubou. Depois que abordaram meu filho na lanchonete, ele aparece morto dentro do mato e com uma arma artesanal, com carteira e celular como se tivesse roubado isso. É inacreditável, difícil de acreditar nessa autoridade. Se meu filho estava dentro de um carro que não era da polícia e com 3 pessoas! Se mentiram sobre isso, devem ter mentido sobre o restante”. O Eduardo não possuía nenhuma passagem pela polícia.
A VERSÃO DA POLÍCIA
Segundo reportagem do veículo local (AF Notícias), na época, a polícia militar havia soltado esta nota:
“A Polícia Militar informa que em decorrência do roubo no setor Santa Helena, em Araguaína, na noite do último domingo, 02, que resultou em confronto entre o pai de uma das vítimas, que é policial militar e estava fora de serviço e dois menores infratores, o agente público se apresentou voluntariamente na Delegacia de Polícia Civil da região, responsável pelo caso. E a Polícia Militar, após tomar conhecimento dos fatos, adotará as medidas legais cabíveis ao caso.
Segundo informações da ocorrência, os dois menores de 14 e 17 anos, portando arma de fogo, renderam uma mulher de 23 anos, a constrangeram sexualmente, tocando seu corpo, e em seguida roubaram sua motocicleta Biz de cor rosa, aparelho celular, jaleco e CNH que estavam com compartimento do veículo. Enquanto a equipe policial militar em serviço se deslocava para atender ao chamado da vítima, foi informada de outra ocorrência de roubo praticada por suspeitos com as mesmas características.
Enquanto a guarnição registrava o roubo referente à primeira vítima, mulher, 23 anos, a equipe foi informada de que o pai da vítima havia localizado os dois suspeitos na região do Setor Vila Azul, onde teria entrado em confronto com os dois homens. Ao chegar no local indicado, a equipe da PM se deparou com a motoneta roubada, e, ao lado do veículo, aparentemente sem vida, o corpo do homem, 14 anos, com perfuração possivelmente provocada por arma de fogo. Ao lado do corpo, foi encontrada uma arma de fogo artesanal, calibre 22. O segundo suspeito foi encontrado no dia seguinte, nas proximidades do mesmo setor.
Foram acionados o delegado da Polícia Civil, perícia e Instituto Médico Legal para realizarem seus procedimentos no local. Diante dos fatos, a motoneta e alguns objetos da primeira vítima, mulher de 23 anos, bem como o celular da segunda vítima, homem de 28 anos, e uma arma artesanal calibre 22 foram apresentados na Delegacia da Polícia Civil.”
As histórias não batem
Mesmo se os menores suspeitos tenham realizado o crime, fato este inclusive contestado pela mãe do Eduardo que foi atrás das câmeras de segurança da região, não existe justificativa para levarem os adolescentes para o mato, e muito menos julgar, condenar e executar como se não houvesse justiça.
Estamos diante de uma sociedade onde cada vez mais “casos isolados” de violência policial, estampam não só os jornais, mas todas as redes sociais, manchando a reputação de uma instituição criada justamente para garantir a segurança da sociedade.