Fora da rota: o que leva restaurantes a fugirem dos bairros mais gastronômicos
Ao comentar a decisão de montar o Lilia, em 2017, num sobrado na Lapa carioca, Lucio Vieira faz questão de frisar que não fez isso para levantar nenhuma bandeira. “Optei pela região central do Rio de Janeiro porque ela se mostrou, economicamente, a mais viável”, resume ele, que se converteu em um dos chefs mais festejados da cidade. “Eu não tinha como arcar com os alugueis cobrados, por exemplo, na zona sul”.
O restaurante, onde Vieira serve pratos como copa lombo com purê de berinjela defumada com mel, quiabo tostado, vinagrete de maçã verde e hortelã, azedinha e demi glace, deu origem a um pequeno império gastronômico. Já são seis negócios no total, todos no centro carioca: Lilia Bistrô, no CCBB, Labuta Bar, Braseiro Labuta, Labuta Mar e Celeste, além do restaurante de número um.
“Com a pandemia, foram surgindo outras boas oportunidades na região”, diz o chef, justificando as demais apostas na vizinhança, onde bares e restaurantes mais populares predominam. “Sem falar no grande fluxo de pessoas, que viram as opções gastronômicas no centro diminuírem com o fechamento de diversos estabelecimentos”.
O sucesso das casas de Vieira serviu de incentivo para o surgimento de novos empreendimentos na região. É o caso do Mercado Central do Rio de Janeiro, cuja inauguração está prevista para este semestre. Entre as ruas do Senado, do Lavradio e a Visconde do Rio Branco, vai abrigar desde lojas de serviço até estabelecimentos gastronômicos – o grupo Canastra e o Café ao Léu, por exemplo, vão se instalar no mercado. “Acho que exerci uma influência positiva na região”, conclui Vieira.
O papel de bares e restaurantes na revitalização de regiões deixadas de lado é o tema de uma das mesas-redondas do próximo SindNews, no dia 24 de setembro. Organizado pelo SindRio, o evento deverá reunir cerca de 300 pessoas no Exc Rio, no Jockey Club Brasileiro. O debate sobre a contribuição da gastronomia na recuperação de áreas esquecidas terá a participação de Lucio Vieira e do chef Gerônimo Athuel.
Gerônimo é grande entusiasta da técnica de maturação a seco, que aplica em pescados nada óbvios, como sororoca, faqueco e carapeba, Athuel está à frente do Ocya, que ocupa a 96ª posição no ranking dos melhores restaurantes da América Latina. A primeira unidade, na Barra da Tijuca, foi inaugurada em 2022. Encontra-se na Ilha Primeira, próxima da Ilha da Gigoia, conhecida por abrigar restaurantes bem mais simples.
Para chegar até lá, é preciso pegar um barco nos fundos do BarraPoint Shopping ou da Estação de Metrô Jardim Oceânico. No ano passado, o Ocya ganhou uma filial no Leblon. A trajetória do restaurante de Athuel e dos empreendimentos de Vieira suscitam a seguinte pergunta: é mais arriscado montar um bar ou restaurante em uma área já conhecida por empreendimentos do mesmo tipo ou a aposta em regiões “fora do eixo”? “Os dois caminhos oferecem vantagens e desvantagens”, observa Fernando Blower, presidente do Sindrio, o Sindicato de Bares e Restaurantes do Rio de Janeiro.
Ele argumenta o seguinte: “Ruas e bairros badalados ajudam a trazer público, mas costumam demandar investimentos maiores, sem falar que destacar-se em meio à concorrência não é fácil. A aposta em regiões que não são conhecidas pela gastronomia, obviamente, sai mais em conta. Só costuma funcionar, no entanto, se o negócio for de encontro com os interesses do público local. Ou se for atrativo a ponto de convencer moradores de outras regiões a se deslocarem até ele”.
“Não dependemos do público passante”, diz a empresária Cris Julião a respeito de seu restaurante, o Casa 201. Inaugurado no ano passado, ele fica na rua Lopes Quintas, no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. Quem passa na frente do imóvel sem saber do que se trata dificilmente imagina que ele abriga um restaurante. Ele só atende mediante reserva e é preciso chegar às 20h. Ao chegar, os clientes devem tocar a campainha — como fariam ao ir jantar na casa de amigos.
O imóvel, que pertence à empresária e ao marido, ficou fechado por quase oito anos. Ela decidiu transformá-lo em um restaurante uma semana depois de conhecer o chef João Paulo Frankenfeld, que virou seu sócio. O endereço só serve menu degustação, sempre com oito etapas, alterado a cada três meses. A sequência atual é composta por pratos como barriga de porco com milho defumado, ervilhas, batatas crocantes e molho de mel de cacau. “Para a nossa proposta, mais intimista, uma rua tranquila como a Lopes Quintas é o ideal”, afirma Julião. “Se ela fosse cheia de restaurantes e bares, como a Dias Ferreira, no Leblon, talvez não combinasse”.
Humberto Ribeiro montou o Soul Botequim, no Brooklin, em São Paulo, com o seguinte plano em mente: criar um bar com potencial para ter mais de uma unidade. Daí a aposta em uma região praticamente sem concorrência. “Se eu abrisse em uma área já cheia de opções, jamais saberia se o bar enche por mérito próprio ou em função do movimento ao redor”, raciocina Ribeiro.
O plano dele deu mais do que certo. Do contrário, o bar não estaria prestes a ganhar sua primeira filial, em Campinas — a inauguração está prevista para outubro. Em funcionamento desde 2017, a matriz se resumia, inicialmente, a um imóvel de esquina que já havia abrigado dois bares de cerveja artesanal. Ribeiro aposta boa parte das fichas no mesmo produto, mas não se limita a ele. “Nunca quis me restringir a quem é fã de cerveja artesanal e entende do assunto”, explica. “Daí a atenção que damos para a carta de drinques e para uma porção de outras coisas ”.
Com o sucesso, Ribeiro anexou dois imóveis vizinhos, ampliando a área interna para 250m² —inicialmente eram 70m². Os chopes que estão engatados nas torneiras são listados em uma lousa portátil, que os garçons movimentam de um lado para o outro, auxiliando a clientela a se decidir. Sim, parte dela é composta por moradores de outras regiões da cidade, mas essa turma é minoria. “Sempre acreditei que o Soul só daria certo se ele caísse nas graças da vizinhança, que correspondem a 90% dos frequentadores”, diz o fundador, acrescentando que nunca investiu um real para divulgar o empreendimento nas redes sociais.
Ele também é um dos sócios da unidade paulistana da cervejaria Hocus Pocus, cuja matriz se encontra em Botafogo, no Rio de Janeiro. Inaugurada há dois anos, a filial ocupa um imóvel de esquina no Largo da Batata, onde bares, dos mais variados tipos, não faltam. “A fama nacional da Hocus Pocus ajuda a atrair pessoas de tudo quanto é lugar”, afirma Ribeiro, admitindo, em seguida, que boa parte do sucesso se deve ao bochicho local.
Movimento inverso
Porém, há casos em que estar fora da rota “tradicional” pode ser um limitante, como no caso do consagrado Cepa. Comandado por Lucas Dante e Gabrielli Fleming, o restaurante funcionou por 5 anos em uma rua no Tatuapé, na zona leste de São Paulo. No entanto, o casal percebeu que a localização era um problema para o crescimento do negócio.
Na última semana, mudaram-se para uma casa com mais que o dobro do tamanho, localizada no badalado bairro de Pinheiros, na zona oeste. Gabrielli diz: “Amamos e seremos eternamente gratos à nossa casa na ZL [zona leste] e por tudo que ela nos proporcionou. Mas nos tornamos um restaurante de destino e, pelo menos, 80% dos nossos clientes não eram do bairro. Para crescimento e desenvolvimento, especialmente de quem trabalha com a gente, precisávamos dar esse passo”.
Se, no passado, a escolha pelo bairro na zona leste foi motivada por um misto de saudosismo — já que Lucas e o antigo sócio Bruno (que faleceu) eram do bairro — e pela percepção de que havia uma oportunidade, uma vez que a região era carente de opções, com o passar do tempo perceberam que era impossível manter a constância de movimento durante a semana. Afinal, o restaurante passou a ser destino, principalmente, aos finais de semana, quando o público tinha mais tempo de se deslocar até o Tatuapé.
Com isso, para proporcionar uma evolução em seu trabalho e para a equipe, optaram pela mudança e escolheram a região de Pinheiros por contar com uma clientela mais assídua, que tem o hábito de sair praticamente todos os dias em busca de experiências gastronômicas. Um caminho inverso na rota não óbvia da gastronomia.
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