Como a revolução nos trens noturnos da Europa virou um fiasco?
Adrien Aumont, fundador da antiga empresa Midnight Trains, emitiu uma nota, em 31 de maio, sinalizando que o sonho de criar uma nova rede de trens noturnos de luxo conectando grandes cidades europeias não se concretizou.
“É com grande tristeza que anunciamos o fim de um sonho. A Midnight Trains faleceu hoje, rodeada de familiares e amigos”, disse ele no comunicado.
Antes do fechamento da empresa, parecia que a Europa estava prestes a experimentar uma verdadeira revolução dos trens noturnos. As viagens de trem à noite voltavam com força, à medida que os viajantes buscavam opções mais sustentáveis para viajar entre cidades.
A ideia de dormir em uma cidade e acordar em outra, a centenas de quilômetros de distância, estava se tornando uma alternativa atraente aos voos curtos, especialmente em um momento em que as preocupações ambientais e as experiências complicadas de viagem aérea estão em alta.
Apesar da demanda, os obstáculos para startups como a Midnight Train, que tentam entrar nesse mercado, são praticamente intransponíveis.
No início, parecia que as novas regras de “acesso aberto”, que permitiam a novos operadores compartilhar a rede ferroviária europeia com as empresas ferroviárias estatais existentes, poderiam abrir espaço para muitas novas ideias e rotas.
Isso incentivou alguns novos operadores a surgirem, prometendo novas rotas, tarifas mais baratas ou acomodações mais luxuosas para atrair diferentes perfis de viajantes. No entanto, apenas alguns conseguiram se concretizar. O Snälltåget, da Suécia, é um exemplo, ligando Estocolmo à Dinamarca e à Alemanha.
O Regiojet, da República Tcheca, opera algumas rotas noturnas para cidades na Chequia, Eslováquia e oeste da Ucrânia, além de trens de férias populares de Praga à costa da Croácia durante o verão. Ambos basearam seus serviços noturnos em operações diurnas já consolidadas.
Até agora, apenas um novo operador totalmente dedicado às viagens noturnas conseguiu começar a operar. O European Sleeper lançou seus trens Bruxelas-Amsterdã-Berlim, em 2023, e agora também oferece serviços a Praga, três vezes por semana.
Quais foram os desafios dos trens noturnos?
As dificuldades do European Sleeper para conseguir trens e horários adequados oferecem uma visão realista dos desafios enfrentados por outros operadores que aproveitam a crescente demanda por viagens noturnas. Inicialmente previsto para 2022, o lançamento foi adiado devido à falta crítica de vagões disponíveis.
A empresa conseguiu reunir um conjunto de vagões dos anos 1970, couchettes e até um vagão de cama dos anos 1950, construído para a lendária Compagnie Internationale des Wagon-Lits (CIWL) – antiga operadora do famoso Orient Express. Com isso, conseguem operar um trem três vezes por semana, em dias alternados, em cada direção. Esperam alcançar uma frequência diária quando tiverem mais vagões disponíveis.
A ambição de lançar uma nova rota por ano se tornou praticamente impossível de acontecer devido à falta de vagões adequados, além dos empecilhos impostos pelas administrações ferroviárias nacionais – especialmente na França. O próximo projeto é um trem Bruxelas-Barcelona, que precisará atravessar a França durante a noite, quando muitas linhas estão fechadas para manutenção.
Como se isso não fosse o bastante, completar a montanha de papelada necessária para obter licenças de operação é extremamente demorado e caro. Embora grande parte seja essencial para provar que um operador potencial possui as competências, o regime de segurança e o suporte financeiro necessários para cumprir suas promessas, os requisitos variados em cada país e a burocracia lenta podem levar anos – e milhões de dólares – para serem superados. Infelizmente, a Midnight Trains nem chegou tão longe.
Apesar de um argumento convincente de que viagens aéreas “limpas” são improváveis até o final do século 21 e que os trens noturnos são a melhor maneira de incentivar as pessoas a optarem pelo transporte ferroviário em rotas de média distância, não foi possível conseguir o apoio financeiro necessário para estabelecer as bases de sua operação.
Outro ponto é que, embora o mercado ferroviário da União Europeia seja competitivo na teoria, a realidade é que essa abertura tem beneficiado principalmente os próprios países membros, em 2024.
“Vantagem injusta”
A crescente rede internacional Nightjet é operada pelas Ferrovias Federais Austríacas (ÖBB), em parceria com outras ferrovias estatais. Por outro lado, a competição em desenvolvimento nas redes de alta velocidade da Europa se resume, em grande parte, a operadores nacionais da França, Itália e Espanha tentando conquistar novos mercados nas rotas uns dos outros.
Sem o apoio governamental — como o que a ÖBB e outras ferrovias estatais tradicionais recebem — é muito difícil conseguir o financiamento necessário para adquirir e aprovar novos trens noturnos especializados.
Nick Brooks, secretário-geral da ALLRAIL, um grupo da oposição que representa operadores ferroviários não estatais, disse ao CNN Travel que as empresas ferroviárias nacionais têm uma vantagem injusta sobre os novos concorrentes.
“Os políticos precisam ser claros: o mercado de trens noturnos ficará praticamente fechado por muito tempo”, afirma ele. “Isso vai contra os objetivos do mercado ferroviário único da União Europeia, o que é um absurdo, considerando que já existe um modelo alternativo claro e eficiente.”
Em sua declaração de 31 de maio, Adrien Aumont, da Midnight Trains, lamentou: “Os canais estão abertos, mas na realidade este mercado foi organizado pelas autoridades públicas para seus próprios operadores antigos, e não para criar novos players”.
Ele percebeu que o domínio dos operadores nacionais sobre o setor ferroviário da Europa e o material rodante apresentavam grandes obstáculos, mas acreditava que isso mudaria. Por isso, pediu aos legisladores europeus que abrissem as portas para os inovadores.
“Esperamos que essa dinâmica permita que fundos de investimento se interessem pelo setor ferroviário, para que outros empreendedores possam ter sucesso em criar novos usos e melhorar a experiência de viagem de trem”, acrescentou. “Para tornar esse meio de transporte querido como uma alternativa significativa à aviação e aos automóveis.”
Demanda crescente
A Midnight Trains queria oferecer uma experiência de “hotel sobre trilhos”, entre Paris e Barcelona, a partir de 2025.
A longo prazo, planejava atender 10 destinos a partir de Paris, incluindo Milão e Veneza, Florença e Roma, Hamburgo, Berlim e Copenhague. Além desses, o trecho entre a Cidade da Luz e Madrid, Porto e Paris-Edimburgo pelo Canal da Mancha.
Embora tenha conversado com vários fornecedores, a Midnight Trains não conseguiu obter nenhum veículo noturno adequado, muito menos iniciar o processo de construção ou reforma de acordo com suas especificações propostas. Não foi a única: todos os operadores ferroviários de acesso livre enfrentam grandes desafios para encontrar vagões reutilizados que atendam às suas necessidades.
Os apoiadores dos trens noturnos de acesso livre estão exigindo que a União Europeia intervenha para criar um ambiente mais fértil para novos serviços. Uma opção poderia ser financiar a aquisição de uma frota de novos vagões noturnos especializados, que poderiam ser alugados para empresas ferroviárias. Isso ajudaria a eliminar um dos maiores desafios enfrentados pelos novos entrantes no mercado.
“European Sleeper demonstra que a demanda por transporte ferroviário de passageiros de longa distância, incluindo trens noturnos, está crescendo rapidamente, e que esses serviços podem ser operados de forma comercialmente viável com acesso aberto”, explica Brooks.
Como a Midnight Trains descobriu: os desafios não terminam com os trens em si. Capitalistas tradicionais e fundos de infraestrutura não estão preparados para investir em projetos arriscados, complexos e de longo prazo, e as empresas de leasing de veículos ferroviários relutam em investir em material rodante sem um contrato de operação garantido a longo prazo.
De toda forma, trens noturnos são complicados, trabalhosos e caros de manter – uma das principais razões para seu declínio desde os anos 1970.
“O esforço necessário para colocar novos trens leitos em operação não deve ser subestimado,” acrescenta o especialista ferroviário Mark Smith, mais conhecido como o guru de viagens ferroviárias online The Man in Seat 61. “Mas a ÖBB e startups como a European Sleeper estão provando que é possível.”
Revitalizando rotas antigas
É mais fácil para as ferrovias tradicionais oferecerem trens noturnos de melhor qualidade. Trabalhando com os Ferrovias Federais Suíços e a Deutsche Bahn da Alemanha, a ÖBB revitalizou rotas noturnas que conectam centros em Viena e Zurique com cidades na Alemanha, Áustria, Itália, Hungria, Polônia, Chequia, França, Bélgica e Países Baixos.
Esse sucesso incentivou outros países, especialmente França, Itália e Suécia, a reavaliar operações noturnas, revitalizar rotas abandonadas e até propor novos vagões para melhorar seus serviços.
As Ferrovias Estaduais Italianas encomendaram 70 novos vagões para trens noturnos, com cabines de alta qualidade, incluindo banheiros e chuveiros privativos, alguns com camas de casal.
Os primeiros veículos serão usados na rota de longa distância de Milão à ilha da Sicília, que atravessa o Estreito de Messina no último ferry para passageiros da Europa. O contrato de US$ 770 milhões (cerca de R$ 4,1 bilhões) pode eventualmente introduzir até 370 novos vagões para atualizar toda a frota de trens noturnos da Itália.
Com a honrosa exceção do Nightjet, que planeja expandir nos próximos cinco anos, os serviços de trens noturnos europeus ainda não corresponderam às expectativas. A demanda cresce, mas as enormes dificuldades de financiamento e a criação de novas operações sufocam .
Obstáculos operacionais, políticos e financeiros formidáveis não desaparecerão da noite para o dia. É necessário um esforço conjunto da UE e dos estados membros para oferecer ferrovias abertas à competição, caso contrário, a tão necessária revolução nos trens noturnos europeus pode morrer antes de ter a chance de florescer.
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