Como sonho de avião supersônico do Canadá se tornou pesadelo nacional
Era para ser uma das aeronaves mais avançadas da sua época, enfrentando a ameaça dos aviões bombardeiros nucleares soviéticos e tornando o Canadá um líder mundial em aviação militar e engenharia. A aeronave supersônica Avro Arrow, também conhecida como CF-105, causou uma grande expectativa.
No entanto, o sonho se transformou em pesadelo quando o programa foi cancelado menos de um ano após o primeiro voo — e muito antes de entrar em serviço.
Até hoje, 65 anos depois de seu fim, o Avro Arrow continua sendo um dos maiores arrependimentos do Canadá e ainda fomenta debate público, pois documentos recentemente divulgados lançaram alguma luz sobre o que aconteceu exatamente com o projeto condenado.
“Essa aeronave era completamente canadense”, diz Richard Mayne, historiador-chefe da Força Aérea Real Canadense, “e os indicadores de desempenho durante seu desenvolvimento mostravam que estava, no mínimo, em pé de igualdade com os designs mais avançados da época.”
“Quando foi cancelado, foi um dos momentos de dúvida do Canadá”, acrescenta. “O Arrow ainda tem um impacto na nossa psique nacional.”
A ameaça da Guerra Fria
O Avro Arrow foi uma resposta direta à ameaça da União Soviética, após o fim da Segunda Guerra Mundial, de bombardeiros capazes de voar o Ártico e alcançar a América do Norte com uma carga nuclear.
“A Força Aérea Real Canadense lançou um requisito em 1952 para um interceptador capaz de velocidade Mach 2 [duas vezes a velocidade do som] e uma altitude de 50 mil pés”, diz Mayne à CNN.
“Eles precisavam de algo rápido que tivesse alcance e altitude para interceptar esses bombardeiros soviéticos o mais ao norte possível, antes que chegassem ao Canadá.”
O fabricante de aeronaves Avro Canada havia acabado de colocar em serviço, com sucesso, o CF-100 Canuck, um caça a jato duplo versátil projetado e construído no país, sendo encarregado de desenvolver uma versão mais avançada.
Era um plano ambicioso que veio em um momento significativo para o Canadá. “O país emergiu da Segunda Guerra Mundial como um jogador importante”, diz Mayne.
“Tínhamos a terceira maior marinha do mundo, a quarta maior força aérea. Mas a cidadania canadense só existiu a partir de 1947 – o Canadá tinha acabado de amadurecer.”
O desenvolvimento começou em 1955. Em tempo recorde, o primeiro Arrow foi apresentado ao público em 4 de outubro de 1957 — o mesmo dia do lançamento do Sputnik I, o primeiro satélite artificial do mundo, que marcou o início da era espacial.
“Foi uma coincidência”, diz Mayne. “Mas uma horrível, porque o Sputnik demonstrou que você poderia colocar uma carga nuclear no foguete que o enviou para órbita. E o Arrow não seria capaz de fazer nada contra mísseis balísticos intercontinentais.”
Final do projeto
Projetado para duas pessoas na tripulação, ostentando um design de asa em “delta” e uma pintura branca que lhe dava uma aparência elegante, o Arrow tinha pouco menos de 78 pés (cerca de 23,77 metros) de comprimento e uma envergadura de 50 pés (ou 15,24 metros). Isso o tornava comparativamente maior do que seu antecessor, o CF-100 Canuck, e o caça americano Phantom F4, que entraria em serviço em 1961.
A aeronave voou pela primeira vez em 25 de março de 1958, mas, naquela época, diz Mayne, estrategistas, militares de alto escalão e políticos já acreditavam que o mundo havia entrado em um cenário crítico de guerra. Ou seja, onde a ameaça nuclear estava restrita a mísseis de longo alcance, com interceptadores e aviões de bombardeiros não desempenhando mais um papel central.
“Isso, na verdade, era uma mentira, porque a ameaça de bombardeiros continuou e continua até hoje, mas esse era o pensamento na época”, diz Mayne.
O avião perdeu relevância, sendo que os custos cada vez mais altos do projeto e o clima político instável contribuíram para o final do projeto.
Em 29 de fevereiro de 1959, o Primeiro-Ministro John Diefenbaker cancelou o programa e, dentro de semanas, os cinco aviões que haviam sido construídos, junto à maioria da linha de montagem, foram destruídos por medo de que pudessem ser alvo de espionagem soviética.
Como resultado, milhares de empregos foram perdidos e a Avro Canada eventualmente faliu. “Se o Reino Unido tivesse comprado alguns Arrows, poderia ter salvado o programa”, diz Mayne.
“Mas sem contratos estrangeiros, nosso país era pequeno demais para sustentar uma tecnologia tão avançada. Mirávamos nas estrelas, o que é irônico porque muitos engenheiros da Avro, mais tarde, foram para a NASA e ajudaram com o programa Apollo.”
Boatos sobre o fim
Rumores e mitos começaram a circular em torno das razões para o cancelamento repentino do programa, alguns dos quais persistem até hoje.
“A aeronave adquiriu quase um status mitológico no Canadá”, diz Alan Barnes, pesquisador sênior da Carleton University em Ottawa, que analisou o papel desempenhado pela inteligência na decisão de interromper o desenvolvimento do avião.
Um conjunto de mitos, segundo Barnes, culpa os Estados Unidos por enganar o Canadá sobre a mudança na ameaça soviética, supostamente, porque não queriam que o Canadá produzisse uma aeronave melhor do que as americanas.
Também dizem que analistas de inteligência canadenses interpretaram mal as informações para terem uma desculpa e apoiarem uma decisão que o governo já havia tomado. Ou seja, a distorção dos dados teria legitimado ou justificado a escolha do fim do projeto.
“Mas tudo isso era especulação, já que ninguém havia visto os relatórios de inteligência”, diz ele.
Em 2023, no entanto, Barnes publicou um artigo sobre esses relatórios após recuperar documentos arquivados que mostram uma ligação clara sobre como os dados foram usados por quem estava no comando. “No início, a força aérea não prestou atenção às informações”, ele diz à CNN.
“Decidiram que queriam um grande avião novo e elegante, então criaram todos os requisitos operacionais de forma isolada, em grande parte, sem realmente prestarem atenção ao que os relatórios diziam.”
No final dos anos 1950, ele acrescenta, o Arrow estava muito caro e bastante atrasado. “A inteligência canadense produziu uma avaliação de alta qualidade no início de 1958, dizendo que a ameaça de bombardeiros não era nem de perto tão séria quanto se pensava, e que os soviéticos não construíam uma força de aviões bombardeiros massiva, e provavelmente mudavam sua produção e pesquisa para os mísseis”, diz Barnes.
A implicação política era que, se havia a diminuição de uma ameaça, teria pouco motivo para gastar tanto dinheiro em uma aeronave incapaz de lidar com mísseis balísticos.
“No verão de 1958, o Comitê de Chefes de Estado-Maior concluiu que não poderia mais recomendar a continuação do programa, mas não queria cancelá-lo imediatamente pelo impacto político”, diz Barnes.
“Meio que adiaram as coisas para o início de 1959, quando ainda era visto como um desastre para a indústria canadense e para a política. O governo fez o que precisava fazer, mas tiveram mais problemas do que soluções. Perderam a eleição alguns anos depois, em certa medida devido a essas questões de defesa.”
Segundo Barnes, a aeronave nunca foi tão boa quanto as pessoas diziam. “Foi cancelado no momento certo para manter essa mitologia [de que era boa]”, ele diz.
“A aeronave nunca voou com nenhum de seus armamentos e motores reais projetado para usar. Tudo era uma questão de potencial. Então, muitos canadenses ainda podem fingir que este teria sido o melhor avião do mundo.”
Impacto duradouro
Em 1997, a CBC (Canadian Broadcasting Corporation) encomendou uma minissérie de TV sobre o avião intitulada “The Arrow”, estrelada por Dan Aykroyd como Crawford Gordon, presidente da Avro Canada. Um modelo em tamanho real de madeira da aeronave foi construído para a produção e está nos arquivos do Museu Reynolds em Wetaskiwin, Alberta.
Outro modelo, feito de alumínio de grau aeronáutico, está em exibição no Aeródromo de Edenvale, em Stayner, Ontário. Um terceiro modelo, com cerca de dois terços do tamanho de um Arrow real, está em construção no Aeroporto de Springbank, em Calgary — mas o objetivo deste é voar. É o projeto de paixão de um grupo de engenheiros que esperam levá-lo aos céus até 2026.
Embora nenhum dos Arrows reais tenha sobrevivido intacto, a cabine original e o trem de pouso dianteiro de um deles, assim como partes das asas de outra aeronave, estão em exibição no Museu de Aviação e Espaço do Canadá, em Ottawa.
Talvez o indicador mais forte da obsessão do Canadá com o Arrow tenha ocorrido em 2018, quando, após um ano de buscas, modelos do Arrow foram recuperados no fundo do Lago Ontário. Em meados da década de 1950, os modelos foram disparados pelo lago como parte de testes de voo. Outras expedições para procurar os objetos já haviam acontecido, mas não tiveram sucesso.
O empreendimento foi financiado do próprio bolso do empresário canadense John Burzynski, da área de mineração. “A importância de encontrar os modelos está em lembrar aos canadenses do grande esforço que foi feito para projetar, testar, construir e voar uma aeronave tecnológica avançada.
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