Mitos gastronômicos: o parmegiana é italiano e outras histórias
Um prato não se resume apenas aos seus aromas, texturas e sabores: ele carrega consigo histórias, seja sobre a sua origem, ingredientes utilizados ou até mesmo quem o criou.
Basta uma rápida pesquisa na internet para encontrar relatos sobre a criação da pizza margherita, que teria sido feita em homenagem à rainha Margherita di Savoia, encantada com a novidade. Ou sobre como soldados americanos, durante a Segunda Guerra Mundial, criaram o carbonara a partir dos suprimentos de café da manhã, que incluíam ovo em pó e bacon. E quem nunca ouviu falar que a nossa célebre feijoada surgiu pelas mãos dos escravos, que aproveitavam as partes descartadas do porco, como pés e orelhas, para fazer um cozido substancioso? No entanto, muitas dessas histórias são apenas… lendas.
O mesmo acontece com algumas crenças que resistem ao tempo, como a de que peixes e frutos do mar devem sempre ser acompanhados por vinho branco ou que gelo grande em drinque é uma forma do bar faturar mais. Mas até que ponto essas afirmações realmente fazem sentido? Prepare-se para descobrir que nem tudo o que escutamos no universo gastronômico é verdade.
Saiba mais sobre os mitos gastronômicos:
“O filé à parmegiana é um clássico italiano”
Experimente pedir um belo filé à parmegiana em algum restaurante da Itália e a decepção pode ser grande. “A receita tal qual o conhecemos é 100% brasileira!”, crava Fellipe Zanuto, chef do Hospedaria e que se dedica a servir uma culinária afetiva, inspirada nas receitas do dia a dia do paulistano.
Zanuto conta que, por lá, o que existe é a clássica parmigiana di melanzane, feita com berinjela em fatias finas enfarinhadas e fritas, com molho de tomate e queijo mussarela e assada no forno. “Existe ainda uma versão sem empanar, em camadas, tipo uma lasanha.” Ou seja, nada de filé mignon ou outro corte de carne. Acompanhamentos como arroz e batata frita também são coisa nossa. “Não se sabe onde foi que surgiu essa combinação, mas é bem típica de nossos restaurantes”, continua.
Zanuto, no entanto, prefere servir seu parmegiana de angus na companhia de macarrão parafuso.
“A pizza margherita foi criada em homenagem à rainha Margherita di Savoia”
A autoria da pizza mais conhecida no mundo é atribuída ao pizzaiolo Raffaele Esposito, de Nápoles. Conta-se que ele criou a margherita em 1889 para ser servida à rainha Margherita di Savoia. A monarca teria adorado a novidade, que levava as cores da bandeira italiana: o vermelho do tomate, o branco da mussarela e o verde do manjericão.
Mas há um porém: “Uma rainha jamais comeria um alimento associado às classes populares, como a pizza”, explica Marcos Paulo, da La Braciera, rede de pizzarias que segue a cartilha napolitana.
Ele se apoia em estudos modernos para questionar essa versão. “Há registros que indicam que a receita já existia muito antes dessa época, e ao que tudo indica essa história da rainha foi puro marketing.” Marcos conta ainda que a pizza típica napolitana teve início com a marinara, há pelo menos 300 anos. “Ela foi reconhecida oficialmente pela União Europeia como especialidade tradicional garantida em 2009.”
“Beirute é um típico sanduíche árabe”
São Paulo é o lar da maior comunidade libanesa do mundo fora do Líbano, que ao longo de sucessivas gerações deixou marcas na cidade. É justamente na gastronomia que está uma das influências mais notórias dessa imigração, com receitas que já nos são tão familiares que parecem ter nascido aqui, como a esfiha e o kibe.
Outro item comum nos restaurantes de comida típica é o beirute, clássico sanduíche no pão sírio que também pode ser encontrado em padarias e lanchonetes. Este, no entanto, é sim uma criação paulistana dos anos 50. “Os árabes não têm por hábito comer carne semi cozida, como o rosbife usado no beirute”, explica Leila Youssef, que morou no Líbano antes de abrir por aqui o Arábia, hoje um dos mais tradicionais e premiados restaurantes da especialidade.
“Eles costumeiramente consomem a carne crua, como no quibe, ou então cozida, frita, assada e até mesmo na forma de conserva.” Leila explica que o beirute surgiu na capital paulista nos anos 50. “O nome foi dado apenas como uma homenagem à capital do Líbano!”
“O carbonara foi criado por militares americanos”
Nos últimos anos, o historiador Alberto Grandi ganhou certa fama ao “desmascarar” o que chama de mitos envolvendo a gastronomia italiana. Uma delas diz que o espaguete à carbonara, uma das mais populares receitas do país, é na verdade uma criação de soldados americanos durante a Segunda Guerra, a partir de suprimentos de café da manhã que incluíam ovo em pó e bacon.
Se na Itália a história causou revolta, em outras partes do mundo – como aqui – virou verdade absoluta. “O carbonara é um prato com uma história tão grande”, defende André Mifano, chef do restaurante Donna, onde reinterpreta clássicos italianos à sua maneira. “Ele já existia em várias formas diferentes, dependendo da região.”
Ao lado do cacio e pepe e do amatriciana, o carbonara faz parte da tríade das pastas típicas de Roma. “Eventualmente, alguém deve ter feito essa receita dentro de uma base militar, substituindo o ovo por ovo em pó e o guanciale por bacon. E agora as pessoas tentam tirar vantagem disso”, garante.
“O pão francês vem da França”
Eis outro clássico brasileiro que engana muita gente por conta do nome. Helena Mil-Homens, chef da padaria artesanal St. Chico, explica que o pão francês surgiu por aqui no início do século 20. “Foi quando a elite brasileira descobriu a França”, diz ela.
Na época, muitos dos costumes de lá começaram a ser reproduzidos por aqui. E o hábito de comer um pão cascudinho e de miolo branquinho era um deles, pois até então os tipos mais comuns no Brasil eram os de massa mais escura.
Helena explica ainda que há sim uma inspiração nas tradicionais baguetes francesas. “Mas é só a inspiração!”. Segundo ela, o processo e os ingredientes são distintos – além do formato, é claro, já que a baguete é mais fina e alongada. “No nosso pão francês normalmente vai um pouco de açúcar e algum tipo de gordura, que tradicionalmente não são usados nas panificação francesa.”
“A feijoada foi criada por escravos como forma de aproveitar as sobras do porco”
Desde o “descobrimento ao acaso”, a história do Brasil está repleta de passagens mal contadas. E nem a nossa tradicionalíssima feijoada escapa.
Ao longo de gerações, contou-se que a receita nasceu pelas mãos de africanos escravizados que foram trazidos para cá, e que se valiam de partes descartadas do porco, como pés e orelhas, para fazer um substancioso cozido.
Por mais que se insista em desmentir, trata-se de uma lenda que ainda corre solta. “A feijoada nada mais é do que a variação de preparos que existem em vários países”, afirma Guillermo Teran, gerente de gastronomia do bar Original, que serve o prato aos sábados.
Entre as receitas similares estão o cozido português, o cassoulet da França e o puchero, tradicional na Espanha.
O toque brasileiro veio da adição do feijão preto, que tem suas origens nas Américas e já era consumido pelos povos indígenas. E foi assim que a feijoada se popularizou a partir do Rio de Janeiro. “Ao que tudo indica, inclusive, foi um prato que nasceu na elite”, conclui Teran.
“Peixes e frutos do mar só combinam com vinho branco”
Algumas mentiras, por serem repetidas à exaustão, acabam sendo tomadas como verdades. No universo das harmonizações de alimentos e bebidas não é diferente. Tradicionalmente, diz-se que vinhos brancos combinam com peixes e frutos do mar, enquanto vinhos tintos acompanham melhor as carnes vermelhas.
“Essa ‘regra’ existe porque os brancos, com sua acidez mais elevada e frescor, tendem a combinar bem com a delicadeza e os sabores sutis do peixe e dos frutos do mar. Já os vinhos tintos, ricos em taninos, costumam ter mais estrutura, o que pode entrar em conflito com o sabor mais leve e a textura dos peixes”, explica Michele Sousa, sommelière do Tuy Cocina, casa de cozinha ibérica no Jardim Paulista.
“Mas isso não é uma verdade absoluta. Vinhos tintos mais leves, com pouca tanicidade e boa acidez, como um Pinot Noir ou um Gamay, podem funcionar muito bem. Segundo ela, a verdadeira regra de ouro é buscar o equilíbrio entre a bebida e o prato. “Harmonizar é mais uma questão de encontrar o que valoriza os sabores e texturas do que se limitar a convenções. E claro, o que vale é experimentar e descobrir o que mais agrada ao seu paladar!”
“Copo com gelo grande é golpe para entregar menos bebida”
Nos últimos tempos, muita gente tem recorrido às redes sociais para apontar que a “moda” dos gelos grandes na coquetelaria seria uma forma de o bar entregar menos bebida ao cliente e, assim, lucrar mais. Afinal, eles ocupam um espaço considerável no copo. Há, inclusive, quem sugira pedir os drinques sem gelo, a fim de se ter mais do conteúdo alcoólico.
“Já ouvi essa história, mas não faz muito sentido. Nunca mudei receita por conta do tamanho do gelo”, defende o mixologista Alê D’Agostino, responsável pela barra do premiado bar Guilhotina, em Pinheiros. Os gelos grandes e cristalinos foram adotados pois ajudam a manter a baixa temperatura da composição sem deixar a bebida aguada, já que diluem mais devagar. “Sem falar que tem um aspecto estético que ajudou na coquetelaria”, complementa ele.
D’Agostino aponta ainda outra questão: “O custo desse gelo é alto. Ou seja, não dá para falar que é para economizar em algo”.
“A torta holandesa vem do país europeu”
A famosa torta holandesa, adorada por fãs em todo o Brasil, na verdade, não tem origem na Holanda.
A torta tradicionalmente consumida por lá é de maçã, sem chocolate e sem bolacha. A versão que conquistou os brasileiros foi criada em 1991, em Campinas, no interior de São Paulo, por Silvia Maria do Espírito Santo, revela Ana Stela Bittencourt. À frente do ateliê de doces finos Gâteaux à Croquer, onde produz doces clássicos franceses como tarte tatin e mousse de chocolate por encomenda, Ana conta que o nome em referência ao país europeu foi dado em homenagem a uma família holandesa para qual a criadora da torta trabalhou durante o período em que morou na Inglaterra.
“Já de volta ao Brasil, Silvia abriu um café no centro de Campinas e ali a receita se tornou um sucesso.” Segundo Ana, um dos segredos da torta holandesa é a cobertura achocolatada, que deve ser suave. “As bolachas banhadas em chocolate também são importantes pois, além de decorativas, elas não murcham.”
“Europeu só bebe cerveja quente”
“Capa branca”, “véu de noiva” e “canela de pedreiro” são termos populares nos botequins país afora. Tratam-se de expressões usadas para definir aquela camada branquinha e fina de gelo que se forma na garrafa estupidamente gelada, do jeito que o brasileiro gosta. Não por acaso, criou-se a crença de que europeu bebe “cerveja quente”.
“Apenas no Brasil a bebida é servida em temperaturas próximas e até abaixo de zero grau”, explica Rodrigo Louro, mestre-cervejeiro do Tank Brewpub, no Baixo Pinheiros. Ele diz que, na Europa, as cervejas eram tradicionalmente armazenadas nos porões de casas e estabelecimentos, locais que tanto no inverno quanto no verão se mantinham com uma temperatura entre 8 e 12 graus. E de lá eram diretamente servidas.
“A ideia de beber cervejas muito geladas por aqui tem duas causas prováveis. A primeira deve-se ao nosso clima, que é consideravelmente mais quente durante todo o ano”, acredita Louro. “E a segunda é pelo consumo predominante de lupuladas do tipo lager, cujo perfil sensorial evidenciado em temperaturas mais altas não é muito agradável.” Segundo ele, nesse ponto gelar mais a cerveja a torna mais neutra.
“Abaixo de zero grau nossas papilas gustativas ficam amortecidas, e assim torna-se irrelevante se aromas e sabores são bons ou ruins. Apenas não os percebemos enquanto nos refrescamos em larga escala com o consumo em quantidade.” Resumindo: europeu não bebe cerveja quente, talvez nós que bebemos ela estupidamente gelada demais.
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